Grades Abertas: Encontros com a Prisão, por Virgílio de Mattos

28 nov 2018

A partir de hoje a Plataforma Desencarcera irá postar semanalmente uma coluna em que uma pessoa conte sua primeira, ou uma marcante, experiência com a prisão. Familiares, militantes, pesquisadores, egressos e quem mais quiser falar sobre para que possamos abolir na prática, no texto e na vida essa instituição que é apenas sofrimento estéril.

APAIXONEI-ME PERDIDAMENTE, DESDE O PRIMEIRO INSTANTE EM QUE AS VI
Virgílio de Mattos

Não me lembro a idade que tinha na época, mas seguramente ainda era “de menor”, como se dizia naquela época e ninguém ligava. Tempos de um código minorista CONTRA os “sementinhas do mal” e estávamos todos combinados.
Menos eu.
Eu editava meus livros de poesia e os vendia de bar em bar. Fazíamos intervenções, provocações, ocupações, sempre com nossos senões. E tínhamos os cabelos e as barbas muito negros, exceto as meninas, que não usavam barba, mas lindos e longos cabelos encaracolados, da cor do destino ou do girassol da música.
O medo roía os calcanhares como cães da polícia e, talvez pela idade, corríamos, corríamos, corríamos, mas nunca da luta. Era exatamente o contrário: corríamos sempre em direção à luta.
O preço ainda era alto, mas, afinal, a ditadura empresarial-militar estava do meio pro seu final, que vivíamos para apressar. Até conseguirmos.
Tínhamos muita pressa e muitos suspeitávamos que a Revolução viria já no próximo semestre. Morávamos, os mais dispostos, em favelas e cortiços. Alguns nem isso. Pingando de casa em casa arrastando uma mala grande e sem rodinhas.
As informações tardavam demais num tempo em que não havia tecla enter e nem o celular de passar o dedo, essa praga. Viajávamos em ônibus velhos, na segunda classe dos trens, nos porões de barcos e navios, nas boleias de caminhões e nas garupas de cavalos e bicicletas. Não posso falar pelos outros, mas eu era muito feliz e sabia disso. Estava fazendo o meu papel. Já que a ditadura insistia em fazer com que a juventude fizesse papel de palhaço.
Pra não falar dos meus perrengues, todo mundo sabe – ou acaba sabendo – um jeito menos duro de tirar a tranca, pra tranca não tirar a gente. Fui um privilegiado neste ponto. O barulho da porta da cela batendo é igual no mundo inteiro. Bombar a capa também.
Desde o final do século passado que trabalho com doido infrator. É doído. Fiz meus estudos de mestrado e doutorado com eles, escrevi livros, artigos, fiz conferências, inspeções, o escambau. Conheço uma infinidade de trancas de doido pelo mundo afora. As que enlouquecem conheço muito também: são todas elas.
Com tranca de mulher (cadeia não é pra homem, como diz a malandragem, cadeia é pra homem, pra mulher, pra gay de ambos os sexos, pra maluco, para adolescente, cadeia é tudo igual, uma merda só) tenho um pouco mais de 20 anos de estrada. Isso é um cisco no olho.
Da primeira vez que as vi foi em Barbacena, no manicômio judiciário de lá. Sujas, delirantes, obesas, sialorréicas, desdentadas e sorridentes: da primeira vez que as vi me apaixonei perdidamente, assim como a palavra liberdade, essa vadia que todo mundo trata tão mal.