Grades Abertas: Encontros com a Prisão, por Luan Cândido
15 out 2024
Luan Cândido – Jornalista, mobilizador abolicionista e sobrevivente do cárcere.
Racismo é tortura… É impossível falar de tortura no sistema prisional sem mencionar o olhar e as políticas racistas que encarceram e exterminam parte da população negra e vulnerabilizada. Sou preto, meu DNA vem lá de Benim, da África… desde criança o racismo esteve presente na minha vida, principalmente nas escolas… Décadas de 80 e 90… Já viu todo mundo odeia o Chris? Eu tinha bom comportamento em sala, era aplicado e inteligente, mas todos os dias tinha que brigar com alguns dos garotos brancos e lembro que algumas das garotas brancas realmente expressavam repulsão pela minha cor e origens. Quando adolescente, praticamente todos os dias, algum policial militar me abordava e me revistava. Sempre que eu via um policial eu sabia que ele iria me parar, ainda hoje percebo que os seguranças ficam alertas aos meus movimentos em ambientes institucionais. O racismo é uma tortura constante, eu vivo uma ditadura racial, pouco posso andar livremente sem ser visto como uma ameaça. Eu cresci a vida toda apanhando e sendo marginalizado nas instituições, meu corpo é estigmatizado e coberto de cicatrizes, até agora chegando aos 40 na fase adulta. A escravidão acabou, mas as instituições reproduzem os padrões racistas e misóginos da época colonial. “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, toda prisão é um legado da senzala.
Sou Luan Cândido, 40, comunicador, estudante de jornalismo. Mais um sobrevivente, recém egresso; das ruas aos manicômios, dos becos aos presídios; trago na pele as marcas de uma ditadura racista e, no olhar, os primeiros reflexos da superação. Articulador da Frente Estadual Desencarcera MG, da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, colaborador da Assessoria Popular Maria Felipa e estagiário no bloco de oposição parlamentar Democracia e Luta.
O sistema prisional é a instituição mais racista e misógina no Brasil, tortura diariamente homens e mulheres. Já no início da prisão, no ato do flagrante, com exceções, quase todos tiveram uma abordagem racista, com agressões físicas e ameaças verbais dos policiais militares; no sistema prisional só piora. Decidi elencar e desenvolver comentários pra cada tortura que eu conseguir lembrar e organizar.
Privação de liberdade é tortura… Ficar confinado num espaço limitado por si só é tortura física e psicológica, corpo e mente adoecem proporcionais ao tempo em que ficamos ociosos e improdutivos; seja na cela individual ou coletiva. Nessa pandemia, até você sentiu um pouco o que é a tortura do confinamento… Passei 3 anos encarcerado, sem qualquer atividade física ou intelectual, engordei, meu joelho enfraqueceu, meu psicológico e intelecto estão abalados pela falta de afeto e de comunicação com o mundo externo. Minha família adoeceu, minha filha desenvolveu depressão por causa da minha ausência e minha mãe teve vários sintomas psicossomáticos de ansiedade. Minhas unhas e dentes apodreceram. ‘Mofei’ na cadeia, meu corpo mudou e ainda sinto as dores pelo tempo que fiquei encarcerado, privado de atividades e cuidados.
Ameaças, agressões e extermínios são torturas cotidianas… Se você acha que a história de Vladimir Herzog é coisa do passado, lê essa que me contaram… um pouco antes de eu chegar na Dutra Ladeira, um camarada foi torturado pelo GIR no setor de segurança do anexo do presídio, muitos ouviram o cara apanhando… no outro dia ele estava morto dependurado como um suicida. Eu mesmo muitas vezes tomei esculacho de agentes, é uma tortura que tem que acabar, é humilhante, revoltante, me provocou uma dor na alma, por abusos de autoridade, por motivos torpes e fúteis fui agredido sem poder reagir, porque estávamos oprimidos numa situação marginalizada e vulnerável. Para os agentes o esculacho é o jeito certo de negociar com quem está em privação de liberdade, se você fizer o que eles querem você não apanha, mas se fizer algo diferente do procedimento, algo ‘errado’, a tortura é justificada e aceita. Aí os agentes torturam com linchamento e covardia quando pegam o camarada fazendo algo ilícito, que dê falta disciplinar ou processo criminal; ou até mesmo por motivos simples, como algum comportamento, comentário, palavra ou olhar que os agentes desaprovam. Então todos os dias alguém é agredido ou espancado pela instituição prisional e não há registros dessas torturas, da gravidade e da profundidade delas, porque elas passam impunes, são aceitas, são “bandidos, homicidas e vagabundos”. Em quase todas as cadeias os agentes agridem durante o procedimento de saída da cela para o pátio de banho de sol. As transferências são sempre uma tortura, se você não apanha na saída pode ter certeza que vai apanhar na chegada, quando deslocado de um presídio para o outro, a único pertence que pude levar é a cueca que eu vestia, então passei por necessidades e humilhações por onde cheguei.
Precariedade é tortura… Na cadeia, tudo falta: água, espaço físico, paz, silêncio, comida de qualidade, produtos de higiene, afeto, liberdade, trabalho, atendimento, remédio… Nos sentimos indigentes e humilhados, é desumano e contraditório ficar anos em situação de vulnerabilidade dentro de uma instituição do estado. Se eu estou encarcerado, meu almoço chegou azedo, só tenho roupas rasgadas, não tenho água, nem atendimento, nem remédio, nem produto de higiene, nem trabalho, nem escola; está mais do que claro que eu estou vulnerável e incapaz de ser regenerado ou de fazer algo por mim ou pela minha família. É uma tortura passar por tantas privações e precariedades junto com centenas, aglomerados no mesmo prédio, passando pelos mesmos problemas sem ter como mobilizar soluções. Nessa última caminhada, tive problemas de saúde dental, mas pela falta de dentista e pela demora pela falta de vagas e nenhuma boa vontade dos agentes em pedir o atendimento, por mais de um ano eu sofri com intensas dores de dente; gradativamente eu perdi dois dentes nessa última caminhada… Enfim, por mais de 2 anos tive a mesma camiseta, faltam roupas, passei frio por falta de manta ou blusas de frio. Em 2018, passamos 6 dias sem água para beber ou dar descarga, numa cela de 5×6, com 28 camaradas, dormia gente até dependurada. Tem gente que acorda pela manhã e não tem uma escova, nem sabonete, nem creme dental para fazer higienização. Os presídios não distribuem quantidade necessária de quites de higiene para suprir a demanda. Te desafio a passar 3 meses com um pedaço de sabão em barra e um creme dental pra lavar sua roupa, tomar seu banho e lavar sua boca 6 vezes ao dia; água só de manhã e à noite. É no stress, na vulnerabilidade e na precariedade que surgem os principais conflitos nas celas. O controle excessivo das cadeias para o cadastro dificulta e extingue a visita das familiares e entrega dos pertences, atualmente não podem visitar namoradas, amigos, apenas os cônjuges casados ou com filhos e parentes de primeiro grau. Com a pandemia, as visitas e a entrega de pertences foram cortadas… meses sem notícias, sem nenhum afeto ou contato com mundo externo… na Dutra não tinha nem serviço de cartas, foram os meses mais isolados da minha vida.
Revista vexatória e truculência com o familiar é tortura… Ser familiar não é crime! As visitas sofrem maus tratos e humilhações pelos procedimentos desumanos para entrar nas cadeias. A cadeia humilha e maltrata o corpo da mulher nesses procedimentos, sejam durante a visita ou na revista dos pertences, são constantes as denúncias dos familiares… A falta de visita também é tortura, em uma situação de guerra contra o coronavírus e a pandemia, o Estado não conseguiu dar, vacina, nem atendimento e ainda não foi transparente para informar às famílias a situação das vítimas de covid-19, somente meses depois dos óbitos, em Minas Gerais, divulgaram uma lista subnotificada.
Privação de direitos é tortura… Tanto na privação de liberdade ou condenações em regime aberto, não posso votar e ao mesmo tempo sofro com todas as políticas públicas que me marginalizam, me encarceram e me exterminam na primeira oportunidade. Não tenho voz nas instâncias do executivo, do legislativo ou do judiciário para defender a mim e a minha família, contra as estruturas e dispositivos biopolíticos que precisam ser combatidos porque são coniventes com a opressão, o racismo, a tortura, a marginalização, o encarceramento e o genocídio de uma população predominantemente preta e vulnerável.
Desconstrução da identidade é tortura… Nas cadeias que passei não é permitido deixar barba grande, deixar de cortar o cabelo, ou fazer cortes tribais. Sempre usei dreadlocks e todas as vezes que fui preso desobedeci ao máximo o quanto pude para não cortar minhas madeixas. Sempre no convívio, porque sou certo, mas chegaram cortaram meu banho de sol ou atendimento porque não cortava o cabelo, passei meses sem tomar sol. Nessa última caminhada, os agentes ameaçaram cortar o banho de sol da cela toda.